sábado, 27 de setembro de 2008

Textos incompletos

Trocaram duas ou três frases a mais. Antes horas ao lado dela pareciam segundos, hoje minutos são eternos. Era hora de se despedir. Nervoso deixou suas chaves caírem no chão, a abraçou e seguiu seu caminho. Cabisbaixo. O coração apertado. Queria voltar e sacudi-la. Sabia que de nada ia adiantar. Resignou-se. A noite ia ser longa... Mas ainda tinha a lua como velha companheira.
Entrou no carro sem saber quanto tempo levou ou com quem cruzou no caminho até ali. Seus pensamentos o perturbavam, eram cheiros, gostos, lugares, sons... O que ocorreu nesses dois últimos anos? Por que aquela frieza entre duas pessoas que um dia se importaram tanto uma com a outra?
Permaneceu ali parado tentando encontrar um sentido naquilo tudo, cavando nas memórias algo que, de alguma forma, fosse capaz de responder suas perguntas. Quanto mais desenterrava, mais questionamentos surgiam e sua aflição aumentava. Tentou chorar, mas as lágrimas secaram em uma de suas noites mal dormidas há seis meses...
Só restou ir para casa. Ao menos o que deveria ser uma. A bagunça era generalizada. A pia atulhada de vasilhas, copos e talheres sujos. Roupas espalhadas pela sala. A cama desarrumada com os lençóis por lavar. Olhou aquilo tudo. Foi para o banheiro e se deteve no espelho. Cara amarrada. Cabelos e barbas por fazer. Há muito a alegria o largara sem deixar recado ou mandar notícias.
É... Estava claro que algo em sua vida urgia por mudança. Afinal aquele garoto sonhador ainda residia em algum lugar do seu corpo. Tudo aconteceria na hora certa. E quando chegaria tal momento? Ele nunca foi muito paciente. Olha o mundo a sua volta. Pensa nos seus últimos meses. Levanta diversas possibilidades sobre o futuro incerto e vai se deitar.

- Quem é você?
- Sou tudo aquilo que você não se tornou.
- Isso é bom?
- Sempre há um lado bom em tudo.
- Me diga você então...
- Não. Vou te falar sobre algo que esqueceu há algum tempo. Quais são seus valores? O que te faz feliz? Ainda se reconhece?
- Não...
- Lembra aquela vez quando tinha oito anos? Achou aqueles três filhotes de gato na rua e os levou para casa. Convenceu sua mãe de permanecer com eles ao menos por uma noite. Mas cedeu e eles dormiram do lado de fora. E fez frio naquela noite... Quando acordou saiu correndo para vê-los...
- E já estavam sem vida...
- Como se sentiu?
- Incapaz, impotente diante da morte...
- E em relação à sua mãe?
- Estranhamente não fiquei com raiva dela. Chorei porque não fui capaz de dissuadi-la no dia anterior. Devia ter argumentado mais...
- Eram só três gatos e nada mais.
- Não! Eram três vidas! – as lágrimas escorrem do rosto – Quem é você? Me conhece de verdade?
- Sim. E era isso que eu buscava... Reconhecê-lo...


Acorda assustado. O rosto em prantos. Chora e sente o gosto salgado das lágrimas. Há quanto tempo não se entregava assim... Correu para o espelho. Fez a barba e acertou o cabelo. Era madrugada ainda, mas sentiu forte vontade de andar pela rua. Chovia. Os pingos de chuva preencheram seu corpo. Sua alma. Novamente chorou. Há coisas que não se explicam e ele entendia isso agora. Necessitava viver mais um segundo, um minuto, uma vida... Decidiu não se punir mais e aceitar as dádivas, transformar as maldições que lhe viessem.
Lembrou dos três gatos. Das vezes na vida em que precisou convencer as pessoas por acreditar em algo que considerava justo. Precisava sair da gaiola, mas tinha medo do mundo que se abria. Era preciso recuperar a fé nas pessoas, nas coisas, em si próprio. Seguiria sua caminhada sem autoflagelações. Acordaria a cada dia renovado. Sairia na chuva nos dias tristes e permaneceria no sol nos alegres. Queria escrever. Para ela uma última vez... A conversa que nunca tiveram. Correu em casa.
“O que ocorrerá quando meus olhos cruzarem com os seus?”