terça-feira, 30 de setembro de 2008

Capítulo IV - Insistência

Todos os dias ela fazia o mesmo caminho. Era sua religião. Seguia pela rua, entrava naquela casa, antes abandonada, e cuidava da jabuticabeira.
Agora a casa estava ocupada, não para ela. Entrava da mesma forma que sempre fez, se via aquele homem o cumprimentava com um sorriso e nada mudava. Alegremente conversava com a árvore que representava, em seu coração, amizade eterna que teria com a amiga que se fora prematuramente. Mais que isso, o amor pela planta crescera, era sua confidente, sempre disposta a ouvir, oferecer a sombra nos dias de sol forte e abrigar nos dias de chuva.
No início ele foi indiferente, até gostava de vê-la por ali. Mas o tempo passou e com ele a esperança que brotara naquela madrugada da limpeza. A amargura tomou seu velho assento naquele peito cansado contudo resignado. Decidiu fechar o portão.
Ela caminhava pela rua como em um dia qualquer, afinal nada indicava que não fosse. Chegou ao grande portão. Fechado. Olhou seu pé de jabuticaba de longe, enfiou as mãozinhas por baixo do trinco e abriu o portão. Sorrindo, vitoriosa, foi até sua companheira.
Ele estava a observá-la da janela. Não gostou do que viu, aquela menina impertinente não sabia o seu lugar? Pensou em ir até ela mas desistiu. Apenas se limitou a acompanhar a liturgia diária. Achou estranho o fato dela ter saído e deixado o portão exatamente como encontrou. Fechado.
No dia seguinte, lá vinha a menina dos olhos pretos e curiosos a cantarolar pela rua cumprindo seu rito. Novamente encontrou o portão fechado e colocou a mão por debaixo tentando abri-lo. Sentiu algo gelado. Um cadeado...
De longe, o homem do olhar melancólico se vangloriava de seu feito, vencera o jogo. Agora essa menina não entra aqui. Pensou. Um leve sorriso esboçou-se naquele rosto rancoroso.
Ela analisou o portão. Enfiou os pés por entre as grades e, triunfante, escalou a barreira que a separava de seu objetivo.

sábado, 27 de setembro de 2008

Textos incompletos

Trocaram duas ou três frases a mais. Antes horas ao lado dela pareciam segundos, hoje minutos são eternos. Era hora de se despedir. Nervoso deixou suas chaves caírem no chão, a abraçou e seguiu seu caminho. Cabisbaixo. O coração apertado. Queria voltar e sacudi-la. Sabia que de nada ia adiantar. Resignou-se. A noite ia ser longa... Mas ainda tinha a lua como velha companheira.
Entrou no carro sem saber quanto tempo levou ou com quem cruzou no caminho até ali. Seus pensamentos o perturbavam, eram cheiros, gostos, lugares, sons... O que ocorreu nesses dois últimos anos? Por que aquela frieza entre duas pessoas que um dia se importaram tanto uma com a outra?
Permaneceu ali parado tentando encontrar um sentido naquilo tudo, cavando nas memórias algo que, de alguma forma, fosse capaz de responder suas perguntas. Quanto mais desenterrava, mais questionamentos surgiam e sua aflição aumentava. Tentou chorar, mas as lágrimas secaram em uma de suas noites mal dormidas há seis meses...
Só restou ir para casa. Ao menos o que deveria ser uma. A bagunça era generalizada. A pia atulhada de vasilhas, copos e talheres sujos. Roupas espalhadas pela sala. A cama desarrumada com os lençóis por lavar. Olhou aquilo tudo. Foi para o banheiro e se deteve no espelho. Cara amarrada. Cabelos e barbas por fazer. Há muito a alegria o largara sem deixar recado ou mandar notícias.
É... Estava claro que algo em sua vida urgia por mudança. Afinal aquele garoto sonhador ainda residia em algum lugar do seu corpo. Tudo aconteceria na hora certa. E quando chegaria tal momento? Ele nunca foi muito paciente. Olha o mundo a sua volta. Pensa nos seus últimos meses. Levanta diversas possibilidades sobre o futuro incerto e vai se deitar.

- Quem é você?
- Sou tudo aquilo que você não se tornou.
- Isso é bom?
- Sempre há um lado bom em tudo.
- Me diga você então...
- Não. Vou te falar sobre algo que esqueceu há algum tempo. Quais são seus valores? O que te faz feliz? Ainda se reconhece?
- Não...
- Lembra aquela vez quando tinha oito anos? Achou aqueles três filhotes de gato na rua e os levou para casa. Convenceu sua mãe de permanecer com eles ao menos por uma noite. Mas cedeu e eles dormiram do lado de fora. E fez frio naquela noite... Quando acordou saiu correndo para vê-los...
- E já estavam sem vida...
- Como se sentiu?
- Incapaz, impotente diante da morte...
- E em relação à sua mãe?
- Estranhamente não fiquei com raiva dela. Chorei porque não fui capaz de dissuadi-la no dia anterior. Devia ter argumentado mais...
- Eram só três gatos e nada mais.
- Não! Eram três vidas! – as lágrimas escorrem do rosto – Quem é você? Me conhece de verdade?
- Sim. E era isso que eu buscava... Reconhecê-lo...


Acorda assustado. O rosto em prantos. Chora e sente o gosto salgado das lágrimas. Há quanto tempo não se entregava assim... Correu para o espelho. Fez a barba e acertou o cabelo. Era madrugada ainda, mas sentiu forte vontade de andar pela rua. Chovia. Os pingos de chuva preencheram seu corpo. Sua alma. Novamente chorou. Há coisas que não se explicam e ele entendia isso agora. Necessitava viver mais um segundo, um minuto, uma vida... Decidiu não se punir mais e aceitar as dádivas, transformar as maldições que lhe viessem.
Lembrou dos três gatos. Das vezes na vida em que precisou convencer as pessoas por acreditar em algo que considerava justo. Precisava sair da gaiola, mas tinha medo do mundo que se abria. Era preciso recuperar a fé nas pessoas, nas coisas, em si próprio. Seguiria sua caminhada sem autoflagelações. Acordaria a cada dia renovado. Sairia na chuva nos dias tristes e permaneceria no sol nos alegres. Queria escrever. Para ela uma última vez... A conversa que nunca tiveram. Correu em casa.
“O que ocorrerá quando meus olhos cruzarem com os seus?”

para Francisco

Eu a vi há algum tempo em um Globo Repórter.
Ela transformou a dor em inspiração, esperança e amor.

Hoje encontrei seu blog, um belo presente para meu recém passado aniversário.

"Com o seu pai eram muitos (mundos). Fique atento, filho: quando acontece de encontrar a cada dia mais mundos com alguém, costuma ser amor."
Cristiana Guerra
parafrancisco.blogspot.com

Para os que, como eu, ainda acreditam que só o amor tudo modifica...

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Capítulo III - Jabuticaba

Ela se lembrava bem. Aquele dia de verão há 7 anos, o sol quente e umas sementinhas nas mão pequeninas.

- Venha, vamos plantar naquele canto. - dizia à amiga enquanto corria embalada.

Fez exatamente como aprendeu na escola, cuidou da terra, arou, adubou e colocou a expectativa de uma árvore ali, carinho e amor maior não se encontraria em lugar nenhum. Molhou e sorriu.

- Será que ela vai crescer? - a amiga perguntou.
- Claro que sim. - a certeza fazia morada no seu coração - Vamos brincar em sua sombra muitas vezes ainda.

Como essa frase ficou marcada em sua vida. E quantas foram as vezes que ao redor daquele pé de jabuticaba as duas brincaram e trocaram confidências de adolescentes descobrindo o mundo. E ali daria seu primeiro beijo aos 14 anos. Ali choraria no ombro da amiga a dor do primeiro amor partido. Ali...
Abraçou seu travesseiro e sentiu o coração apertar... Foi um dia antes do acidente. As duas passavam a tarde juntas e foram até a jabuticabeira.

- Me promete uma coisa?
- Sim.
- Que você sempre cuidará do nosso pé de jabuticaba?
- Claro que sim. Mas nós vamos cuidar dele para sempre.

Há coisas nessa vida que não se explicam. No dia seguinte, um carro, um acidente e nada seria como antes...
Sim, nada seria como antes. Naquele coração que ainda descobria o amor, a saudade doída da amiga se instalaria por um longo período. E as lágrimas rolam... E a dor persiste... Mas restou a jabuticabeira, como os campos de trigo a lembrarem os cachos dourados de um pequeno príncipe.

Agora, no escuro do seu quarto, o pranto tomava conta do rosto que combinava muito melhor com um sorriso. Por quê? Pergunta pertinente que perduraria por muitos anos em seus pensamentos. Ela era tão nova, tinha tanto por viver ainda? Por quê? E quem iria entender? Quem poderia acalmar aquele coração machucado? Mal saberia ela...

E cansada de tanto chorar, foi vencida pelo sono. Sonhou com a amiga correndo para a sombra da jabuticabeira, sorrindo e chamando-a. Ouviu um latido e, no seu sonho, aquele cachorro que a cheirara recentemente aparecia fazendo festa. Era um belo dia de verão e os raios de sol esquentavam sua pele produzindo uma sensação maravilhosa de bem estar. E no coração instalou-se a mais profunda paz. Paz... A menina sonhadora a procurava e encontrava, quando dormia ou cuidava da árvore.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Capítulo II - Limpeza

Era preciso começar por algum lugar. Limpou um canto do jardim onde colocou ração e água para seu fiel amigo. Parou-se um tempo olhando a jabuticabeira. Não sabia ao certo porque fazia isso. Pegou-se pensando no encontro que ocorrera mais cedo. Riu ao lembrar do jeito infantil daquela menina dos olhos pretos e curiosos. Riu... Quanto tempo não via seus lábios se flexionarem daquela forma... Quanto tempo muita coisa não acontecia...
Logo se desfez de seus pensamentos, havia muito trabalho. Pegou um balde e encheu de água. Vassoura em punho. Olhou a sala imunda e resolveu comer algo.

- Por que a pressa? - falou alto tentando se convencer de que a limpeza poderia esperar.

Enquanto fazia um sanduíche de mortadela se transportou a outro tempo. Ficou tão distante que nem percebeu o seu cão latindo e saracuteando por um pedaço daquele lanche.
Aquele lugar urgia por limpeza. Não o físico... O coração estava carregado de mágoas, rancores, remorsos, arrependimentos... Há muito ninguém aparecia por ali. Ele precisava fazer algo. Mudou-se mas tudo parecia como antes.
A chuva começou a cair e o sol se foi. O frio continuava. Por quê? Essa interrogação teimava em martelar na sua cabeça. Começou a arrumação. Tirou a poeira amontoada na sala, não sem antes espirrar várias vezes. Varreu os quartos. Desinfetou os banheiros. Consertou o chuveiro. Trocou as lâmpadas queimadas. Ajeitou seus livros. Os móveis chegaram no fim da tarde quando toda casa já estava limpa. Virou a noite montando camas e armários. Se cansou. Deitou no sofá.
Estava exausto, todo corpo doía. Todo corpo... As lágrimas rolaram sem motivo. Pelo menos era assim que ele preferia ver. Talvez fossem de felicidade por estar recomeçando. Talvez de medo pelo que estava por vir. Não. Ele bem sabia... Eram de saudade...
Rex lambeu sua mão e deitou-se próximo.

- O que seria de mim sem você? Sempre ao meu redor, me protegendo, me observando, sendo um amigo fiel. E o que me cobra para isso? Um pouco de ração, água limpa e um afago eventual.

Olhou seu cão com muito afeto. Acariciou sua cabeça e o pranto, que havia se contido, desatou em soluços. Estava frágil. Neste instante lembrou do pé de jabuticaba, da menina que entrou pelo portão sem fazer cerimônia e permaneceu ali mesmo quando descoberta. Tinha um sorriso maravilhoso, era visível a pureza de seu coração.
Sua condição se modificou. Encheu-se de esperança e decidiu cuidar daquele jardim. Se dedicaria às plantas como aquela menina fez com a jabuticabeira. Um novo tempo o esperava, que fosse da mais profunda paz...